quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Mouffe

Feminismo e filosofia política em Chantal Mouffe

*Josadac Bezerra dos Santos

Em “O Regresso do Político”, coletânea de ensaios da própria autora, o feminismo enquanto corrente teórica no pensamento da filósofa Chantal Mouffe (1996), aparece associado a uma corrente do pensamento político. Mouffe faz uma distinção entre o que ela chama de “a política” e “o político”. Na primeira expressão a referência é ao mundo da política entendido como a organização institucional do Estado e das instituições representativas tais como partidos políticos, sindicatos, igrejas, associações de classe, entre outras. Na segunda, a referência é a uma compreensão teórica segundo a qual a sociedade estaria pulverizada por uma diversidade de situações de conflito e de relações de opressão, onde se evidencia a luta pela igualdade e/ou liberdade em determinados pontos do social, numa clara indicação de que o projeto político moderno elaborado pelo liberalismo falha no propósito de estender, a todos e a todas, tais benefícios.

A contribuição específica de Mouffe vem do que ela entende por “democracia radical”, e de suas reflexões sobre a relação amigo/inimigo em política. A autora parte da noção de C. Schmitt para quem o fundamento do conflito político se encontra na existência de um elemento de hostilidade entre os seres humanos, evidenciado em nossas sociedades modernas pela manifestação de uma diversidade de relações sociais as mais diferentes, onde tais conflitos acabam aparecendo. Ora, ao reconhecer a natureza necessariamente diversificada das relações sociais, e nelas as condições de possibilidade do surgimento de conflitos em determinados lugares do social, Mouffe estabelece as bases para a defesa de sua teoria política que, ao contrário da perspectiva liberal, sustenta a importância do dissenso numa sociedade democrática. A este reconhecimento Mouffe chamou de “pluralismo agonístico”. A natureza radical da democracia estaria, portanto, na inerradicabilidade do antagonismo (MOUFFE, 2003).

Em relação ao conceito de identidade, pelo menos três características precisam estar claras: a primeira é o caráter relacional inerente às identidades. Toda identidade constrói-se na relação com o outro. No conflito político, o “eu” só existe como diferença do “outro”. O “eu” (particularismo), tende a associar-se a outros, construindo-se assim um “nós”, que por sua vez tende a se opor a um “outro” que se articula a outras particularidades, formando um “eles”. É neste momento que “o político” aparece ontologicamente no processo social (LACLAU, 2006).
A segunda característica da concepção de identidade em Laclau e Mouffe é o antiessencialismo. Este é a negação da existência de um fundamento único, de caráter universal e de natureza permanente. E a terceira seria o descentramento do sujeito, como explicitado Stuart Hall (2004), em virtude do reconhecimento de que também não é possível falar-se em um sujeito universal completamente transparente, o que por sua vez implica em admitir-se a existência de posições de sujeito (LACLAU, 2006). Isto significa que agentes sociais são portadores de diferentes posições de sujeito em situações diferentes na sociedade, o que acaba não permitindo que qualquer dessas posições torne-se completamente fixa, a não ser temporariamente e de forma precária.

Assim, para Mouffe não é possível falar-se da categoria “mulher” nem enquanto sujeito universal, nem enquanto uma identidade essencial do feminismo. Aliás, essa rejeição radical a qualquer essencialismo tem sido um dos marcos mais relevantes do seu pensamento em relação às outras concepções teóricas feministas, uma vez que a sua principal crítica às demais correntes consiste em afirmar que às diversas teorias feministas preservam algum tipo de essencialismo. Mais do que isso, um essencialismo pré-existente aos conflitos inerentes à própria construção das identidades, o que na sua visão impossibilita a resolução do problema fundamental apontado pelo movimento feminista: a desigualdade entre os sexos e a situação de opressão em que em muitas situações se encontram as mulheres.

A solução apontada por Mouffe passa, então, pelo que ela entende ser o caminho possível para um feminismo conseqüente politicamente: o reconhecimento de que a luta das mulheres se assemelha a outras lutas de outros movimentos que buscam pelo mesmo valor político em muitas situações conjunturais concomitantes, sempre de caráter contingente e precário; e que só através de uma prática política articulatória entre uma variedade de movimentos que estejam lutando por algum significado particular de liberdade e/ou igualdade, é que se torna possível falar-se de um movimento feminista.

Breves considerações práticas

Um exemplo do que estamos afirmando, pode ser percebido na leitura do “Manifesto sobre a Campanha da Fraternidade 2008 - Considerações de Católicas sobre a Defesa da Vida”, recentemente divulgado pelas Católicas pelo Direito de Decidir, uma ong feminista formada por teólogas e sociólogas católicas que defende a legalização do aborto a partir da condição de mulheres católicas. No referido manifesto há alusões explícitas à eutanásia, um tema pouquíssimo debatido no país, mas, incorporado ao discurso das Católicas pelo Direito de Decidir porque embora tenha particularidades que o diferenciam em muito do discurso sobre a defesa do aborto, o discurso sobre a defesa eutanásia tem um elemento que o remete ao discurso pela defesa do aborto: o direito de decidir.

O apoio das Católicas pelo Direito de Decidir à luta dos homossexuais, por exemplo, é também uma demonstração concreta desta prática articulatória. As Católicas pelo Direito de Decidir são presença certa nas paradas pela diversidade sexual que ocorre periodicamente na cidade de São Paulo. Mas uma vez, pode-se perceber que a particularidade do movimento GLBTT não impede que tal movimento receba o apoio político das Católicas pelo Direito de Decidir, uma vez que todos esses discursos defendem politicamente o direito de decidir. Às mulheres o direito de decidir sobre seus corpos e sobre a sua capacidade reprodutiva; aos que sofrem e perderam qualquer sentido de dignidade da vida, o direito de decidir sobre o fim de suas funções biológicas vitais e, aos homossexuais e outros grupos alternativos no campo da sexualidade, o direito de decidir sobre suas sexualidades, e assim por diante.

Para que se reconheça a situação de conflito e, consequentemente o dissenso inerente às democracias modernas, é preciso lembrar que existe na sociedade brasileira, hoje, uma prática política articulatória que reúne alguns discursos particulares que se unem em favor de um outro significante: o direito à vida em oposição ao direito de decidir. O discurso oficial da Igreja Católica pelo direito à vida encontra receptividade dentro da esfera religiosa, tanto em igrejas protestantes históricas quanto no espiritismo; e fora da esfera religiosa entre homens de mentalidade machista, grupos políticos conservadores, e discursos jurídicos fundamentados nas fontes tradicionais do direito, seja no que se refere ao aborto, à eutanásia ou na questão da diversidade sexual, sempre na defesa da negação da autonomia desses sujeitos que assumem posições opostas à visão hegemônica na nossa sociedade.

Conclusão

Concluí-se, pois, que para Mouffe o feminismo só se constitui em um movimento político conseqüente fazendo parte de uma ação articulatória mais ampla que, associado a uma cadeia de equivalências formada por outros movimentos cujo discurso aponte para situações de opressão, lute por liberdade e/ou igualdade na busca pela democracia em lugares pontuais do social, onde estes valores políticos não estejam total ou parcialmente presentes.

Pelo menos em grande parte, excluí-se também a possibilidade de que Chantal Mouffe apresente uma teoria social exclusivamente feminista, como o fazem outras autoras, uma vez que suas concepções sobre a revolução do nosso tempo, implicam em que se terá necessariamente de construir um projeto político mais amplo em torno de muitas situações pontuais do social, associadas a outras muitas situações particulares, na construção de uma hegemonia, que inverta a situação encontrada.

*É doutor em Sociologia e professor de Ciência Política do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe - UFS. josadac@oi.com.br

retirado de http://www.fatimacleide.com.br/?p=2257

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