terça-feira, 22 de setembro de 2009

Avelar e Risério

O livro do ano

Trata-se, na humilde opinião deste blog, do livro mais importante publicado no Brasil em 2007. A utopia brasileira e os movimentos negros, de Antonio Risério, já nasceu clássico. Racismo, cotas raciais, mestiçagem: nada disso já pode ser discutido seriamente sem referência a este livro corajoso e debochado, anti-acadêmico mas erudito, politicamente incorreto mas incendiário. Risério é uma voz quase que solitária no debate sobre estes temas. Conhecedor profundo das culturas negromestiças brasileiras – autor, afinal de contas, de Carnaval Ijexá e Oriki Orixá -- Risério vem alertando: é um suicídio jogar fora o bebê da mestiçagem junto com a água suja do combate ao racismo. Importar as lentes bicolores americanas é importar o que os Estados Unidos têm de pior.

É difícil resumir a tese de um livro tão rico (há até um capítulo sobre o futebol), mas aí vai minha melhor tentativa: a importação do paradigma racial dicotômico americano, obra do academicismo bem-pensante e dos movimentos “neonegros” (o termo é de Risério), choca-se com a realidade multicromática do país. Tenta encaixá-la numa camisa-de-força binária. Confunde a mestiçagem – maravilha e legado do Brasil ao mundo – com o escamoteamento do racismo, como se celebrar a mistura significasse esquecer que ainda existe discriminação no Brasil. Sim, sim, você já ouviu esse argumento. Dito assim, parece à toa. Mas fundamentado como está neste livro, jamais.

Há um capítulo sobre as origens da one-drop rule, a incrível classificação racial americana que determina que um sujeito com 1/32 de sangue negro seja catalogado como negro: paradigma que tem suas origens no horror puritano ante a mistura, depois curiosamente adotado pelas suas vítimas. Risério manda ver, sem floreios acadêmicos e sem medo: Os EUA são o único país do mundo em que o filho de um preto com uma branca é preto ... Estranho é que os norte-americanos estranhem que o resto do mundo não classifique pretos e mulatos do mesmo modo que eles. Falam aqui a cegueira e a arrogância imperialistas de sempre (p. 94). Daí Risério emplaca uma análise sobre a “morte dos deuses” nos EUA, a completa ausência de sobrevivências africanas entre os negros americanos, do tipo visto em qualquer esquina de Salvador ou Havana (mostra-se como a criatividade negra nos EUA foi rapidamente canalizada para a criação de um cristianismo negro). Na seqüência, Risério desmonta, um por um, os argumentos dos racialistas binários, que estudam o Brasil com o paradigma americano na cabeça, como Peter Blanchard ou Jacques D'Adesky.

É notória, para qualquer um que tenha lecionado nos EUA, a ânsia dos estudantes norte-americanos que se dedicam ao Brasil de escrever trabalhos de “crítica ao mito da democracia racial”. É um pouco constrangedor ver a reação deles quando você coloca a singela pergunta: “você vê esse mito onde mesmo?” Não há aprendizagem mais difícil para um estudante norte-americano que a descoberta de que não existe mito da democracia racial no Brasil; que no livro mais freqüentemente associado à idéia (Casa Grande e Senzala), essa expressão jamais aparece; que ninguém em sã consciência no Brasil diria que vive numa democracia racial. E que isso, obviamente, não implica que não exista racismo no país – só implica que as coisas são um pouco mais complexas, menos cartesianas. Hermano Vianna uma vez me disse que o que precisamos mesmo é de uma genealogia do mito do mito da democracia racial. Ou seja, uma explicação do porquê de tanta gente ter pensado que pensamos isso. Pois bem, a explicação chegou. Está em A utopia brasileira e os movimentos negros.

Há muito mais. Há um capítulo espetacular sobre o neopentecostalismo (que, na bela frase de Risério, partiu para cima do candomblé, decidido a detoná-lo em sua cidade sagrada); há outro irretocável sobre a língua (onde Risério reflete sobre o tremendo paradoxo de que um militante do movimento negro censure alguém por usar a palavra batuqueiro – vocábulo africano! -- ao invés de percussionista – termo latino!); há outro ainda sobre Cuba, que é talvez o que de mais erudito se escreveu sobre a ilha em português. Há também um capítulo sobre o futebol, onde se encontra uma citação de João Saldanha que comete uma injustiça que Risério não pescou: o Atlético Mineiro jamais impediu negros e mulatos de comporem sua equipe; o América e o Palestra Itália, sim. O Galo, jamais. Eu não poderia terminar esta resenha sem fazer a correção. A equipe campeã de 1915 já era formada por negromestiços.

Quem lê este blog desde 2005 sabe da minha defesa das cotas raciais. O Biscoito Fino e a Massa não apaga posts. O que eu pensava sobre as cotas raciais em 2005 está aqui. O que penso hoje, bem, deve ter ficado claro acima. É maravilhoso poder mudar de idéia, convencido por um argumento superior. Evoé, Risério.

Texto de Idelber Avelar em

http://www.idelberavelar.com/archives/2008/01/antonio_riserio_a_utopia_brasileira_e_os_movimentos_negros_1.php

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