A sedução da raça
Abraham Lincoln será sempre lembrado como o presidente que suprimiu a escravidão nos Estados Unidos. Mas ele, como tantos outros na mesma época, era um defensor do "retorno à África" dos negros americanos. Em 1862, perante um grupo de negros que convocou à Casa Branca, disse: "Vós e nós somos raças diferentes. Pouco importa se isto é verdadeiro ou falso, mas o certo é que esta diferença física é uma desvantagem mútua, pois penso que muitos de vós sofrem enormemente ao viver entre nós, ao passo que os nossos sofrem com a vossa presença."
Quase um século mais tarde, Davis Knight, um rapaz do Mississipi, foi condenado à prisão por ter violado a lei que proibia a miscigenação. Para condená-lo, o Estado provou algo que ele desconhecia: uma de suas bisavós fora escrava, quando criança, e portanto ele tinha "sangue negro", mesmo que em proporção inferior a 1/16 avos.
Os dois eventos estão em A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros, de Antonio Risério, um daqueles raros livros para os quais cabe o adjetivo essencial. São 16 ensaios articulados por um cabo de aço que é a revolta intelectual contra a importação das políticas raciais americanas. Nos EUA, a regra da "gota de sangue única" divide a sociedade em raças que são, por definição, puras. No Brasil, os movimentos "neonegros", como os define Risério, engajam-se na invenção de um país inexistente para imitar o modelo americano, fabricando a raça nas leis com a esperança de incuti-la nas consciências.
Pureza racial. O ideal ariano, objetivamente contraditório com as mestiçagens práticas e simbólicas de um mundo de fluxos acelerados, só pode existir pelos meios da interdição ofi cial, como no Mississipi do passado recente, ou da classificação racial estatal, como pregam os racialistas no Brasil. Na apresentação de um livro do antrópologo da USP Kabengele Munanga, alerta-se para "os prejuízos que a mestiçagem vem causando ao negro no Brasil". A melodia da raça pura é a estrela fixa na trajetória aparentemente paradoxal de Abdias do Nascimento, ícone dos movimentos negros brasileiros, que bateu ponto no integralismo, ergueu a bandeira do nacionalismo progressista e da "democracia racial" e, depois de uma estadia nos EUA, converteu-se em porta-voz iracundo das atuais políticas racialistas. Risério insere cada coisa no seu contexto histórico, desarmando os rasos discursos ideológicos dos intelectuais "neonegros".
A escritura de Risério é uma declaração de amor ao Brasil, mas de um amor isento da paixão cega que tolda a crítica. Ele não nega o racismo: pelo contrário, identifica a sua presença intersticial, difusa e abrangente. Sobretudo, evidencia a diferença crucial entre o "nosso" racismo e o "deles" (o dos EUA). Aqui, o racismo frutificou como programa de branqueamento; lá, como congelamento oficial e cultural da separação entre raças. Mas o "nosso" programa de branqueamento fracassou, estilhaçando-se de encontro à mestiçagem. Como revelam os dados censitários, a mestiçagem brasileira tende a eliminar tanto os "negros" quanto os "brancos", dinamitando as bases sociais das políticas de raça. Os intelectuais "neonegros" e os movimentos que os seguem representam uma resposta reacionária a esse processo: uma tentativa de restauração do conceito anacrônico de raça.
Na apresentação da obra, Risério reclama um honesto debate de ideias. O seu livro inspirado merece coisa melhor que os previsíveis insultos dos fanáticos da raça e os encômios vazios dos aduladores.
E, de fato, há nele algo fora do lugar: aqui e ali, a lâmina de sua crítica perde o corte, enredando-se na armadilha do pensamento racial. Dessa armadilha, emerge um mestiço definido como objetividade biológica, isto é, como entidade pré-política, amparada no intercâmbio genético e nas profundezas da cultura. Esse mestiço "natural", uma figuração antiga do povo brasileiro, remete o debate de volta para o túnel romântico da ancestralidade, que é o campo de ação dos racialistas. Não se trata de negar a extraordinária amplitude do intercâmbio genético no Brasil, mas de insistir naquilo que Gilberto Freyre já havia registrado: somos todos mestiços, independentemente de nossas árvores genealógicas, pois é assim que nos enxergamos e definimos.
Wolfgang Gabbert sugere traduzir a etnicidade como um fenômeno de diferenciação social no qual os atores escolhem marcadores culturais ou fenotípicos para distinguir a si próprios dos demais. Isso significa que a etnia, tanto quanto a nação, é uma "comunidade imaginada" - e que ela surge na instância política. A "raça pura" não existe nos EUA (ou, em geral, no mundo), mas pode ser inventada de modo eficaz pela regra da "gota de sangue única". A divisão bipolar do Brasil em "brancos" e "negros" contraria a biologia e nossa experiência histórica - mas pode ser fabricada por um Estado que se engaja na classificação étnica dos brasileiros e na imposição de leis raciais.
Risério fecha os olhos para esse perigo real precisamente por acreditar demais nas permanências da biologia e da cultura. O Brasil não é os EUA, nem a África do Sul ou Ruanda. Mas a mestiçagem é um plebiscito cotidiano, não um talismã que nos protege da sedução da raça e do cortejo de violências que sempre a acompanha.
Jorge Demétrio Magnoli, é sociólogo, doutor em geografia humana pela USP, integrante do Grupo de Análises de Conjuntura Internacional da USP (Gacint) e colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.
em http://desafios2.ipea.gov.br/003/00301009.jsp?ttCD_CHAVE=11108&btImprimir=SIM
terça-feira, 22 de setembro de 2009
Dica
Pessoas, leiam as entrevistas de Risério, concedidas na época do lançamento do livro A Utopia brasileira e os movimentos negros, que discutiremos amanhã.
Em http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI2696371-EI6608,00-Uma+entrevista+um.html
e em http://www.idelberavelar.com/archives/2007/11/antonio_riserio_a_utopia_brasileira_e_os_movimentos_negros.php
abrs
Em http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI2696371-EI6608,00-Uma+entrevista+um.html
e em http://www.idelberavelar.com/archives/2007/11/antonio_riserio_a_utopia_brasileira_e_os_movimentos_negros.php
abrs
terça-feira, 8 de setembro de 2009
quarta-feira, 2 de setembro de 2009
Eis a entrevista
“Fui ao banheiro da UFBA e vi a suástica na parede’
Pingue-pongue / Paul Gilroy
Leandro Colling
Correio da Bahia, 08/08/2000, caderno Folha da Bahia.
Professor de Sociologia e Estudos Afro-americanos da Yale University (Estados Unidos), Paul Gilroy, 44 anos, esteve em Salvador, no final do mês passado, participando do VII Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic). Além de palestrar, ele também lançou aqui o seu mais novo livro Against race (416 páginas, U$29,95). Gilroy ficou conhecido internacionalmente com o livro The black atlantic (280 páginas, U$14,95). Ambos foram editados pela Harvard University Press e podem ser adquiridos pelo site www.hup.harvard.edu.
Nesta entrevista, traduzida pela professora Liv Sovik, ele retoma algumas das suas preocupações como a presença do fascismo na sociedade contemporânea, a redução dos negros a meros símbolos, a validade da crítica ao pensamento de Gilberto Freyre.
Folha - Gostaria de começar repetindo uma pergunta que a professora Luiza Bairros, ligada ao movimento negro da Bahia, fez após a sua palestra no Congresso da Abralic. O senhor sugeriu uma mudança de ênfase no conceito de diáspora, não apenas relacionando-o com a idéia de movimentação de pessoas. Qual é a aplicabilidade do conceito para os movimentos negros do Brasil?
Gilroy - O conceito de diáspora tem maior utilidade quando é mais ligado à história da violência e terror. A visão mais escolástica o vê como sinônimo de viagens e produz uma inocência que, para mim, é profundamente preocupante. É muito fácil somatizar o deslocamento se você está numa situação confortável. Na intervenção que ela fez, enfatizou a elasticidade do conceito. Eu acho que a elasticidade é um dos motivos pelos quais vale a pena brigar por esse conceito. O que me interessa é a forma em que resistem as inclinações disciplinares e autoritárias dos que querem construir a nação. Mesmo quando eles têm boas intenções, acabam envolvidos em outras dinâmicas. No momento em que o nacionalismo insurgente se torna um nacionalismo governamental, está aí um umbral que precisamos olhar com cuidado. Porque o nacionalismo, em todas as suas formas, é um conjunto de patologias.
F - Na palestra, o senhor falou que essa mudança de ênfase do conceito de diáspora pode interromper a lógica daquele que tem o poder de determinar a identidade cultural. Como isso pode ocorrer?
PG - Existem diversas camadas nesse processo. A primeira é a circulação das pessoas, em geral relutantemente. É uma viagem forçada e por obrigação. Em segundo lugar, está a circulação de culturas materiais. Os objetos, à medida que circulam, podem transcender o seu estatuto de simples ou meras mercadorias. Em terceiro lugar, temos a circulação de idéias e mentalidades, a sensibilidade com relação ao mundo natural, externo e interno. Todas essas camadas contribuem com esse processo. E, depois, entram os processos tecnológicos, os complexos tecno-culturais promovendo diferentes padrões ou modelos de solidariedade. O meio acadêmico se identifica muito melhor com o movimento de culturas textuais do que com outros complexos tecnológicos e as formas em que a vida das pessoas pode se conectar.
F - Ao falar da terceira camada desse processo, lembro do seu novo livro, Against race, onde o senhor defende que a mídia reduz as pessoas negras a meros símbolos. O senhor poderia desenvolver esta afirmação? Em que segmento da mídia, o senhor vê isso com mais ênfase?
PG - Quando eu escrevi esse livro, estava pensando na revolução fascista política dos anos 30. Eu vejo esse momento como uma inovação primária política. Uma das formas em que isso se registra é na discussão, já antiga, chamada de estetização da polícia. Eu queria desenvolver essa discussão tomando outro rumo. Não como a política é fruto do ser espectador e da diversão em massa, mas rumo à presença dos significantes icônicos. Os símbolos destilados que são parecidos com esses planetas pesados que nós conhecemos, onde a matéria é tão densa que uma colherinha de chá já fura a terra. O surgimento destes significantes icônicos está ligado com a proibição da fala que os regimes autoritários e totalitários exigem.
F - O senhor poderia dar um exemplo?
PG - O símbolo da Nike vira um choque posterior ao da suástica. Esse aspecto de associação se dá através das rotinas da cultura da empresa. Me interessei em saber o que acontece com o corpo do negro nessas circunstâncias. Para tomar um exemplo óbvio, que não é o de Pelé, cito a figura de Michel Jordan. Eu sei que há algumas resistências a essas questões aqui, mas eu sei que ainda estão presentes. Se você compra a roupa com a grife dele, a logomarca é uma imagem dele pulando no ar com uma bola na mão. Isso torna-se um ícone em si mesmo. Eu queria entender como essa mentalidade empresarial tratou desta política identitária. A necessidade de saber e ter certeza de quem se é em circunstâncias que produzem uma ansiedade em torno de quem se é. Isso foi colonizado por interesses empresariais.
F - Então, o negro se transformou apenas num símbolo de vitalidade e isso também tem importância, mas não uma importância substancial?
PG - Na história do pensamento da raça, que divide claramente os atributos do corpo com os atributos da mente, aos negros foram delegados os atributos do corpo há muito tempo. Mas o diferente é que neste momento pós-moderno, a atividade corporal adquiriu um novo prestígio que atravessa culturas. Eu já observei da janela do quarto do hotel (ele estava hospedado na orla da Barra), os cidadãos privilegiados que estão fazendo exercícios na academia ali em frente. Esta é a cena primal do pós-moderno. É diferente, me parece, do praticar capoeira na praia.
F - No seu novo livro, o senhor também fala que o poder de sedução do fascismo não morreu com o fim dos fornos na Alemanha. Onde o senhor identifica o fascismo com mais força?
PG - Quando eu fui ao banheiro na universidade (UFBA), vi uma suástica na parede. Eu sei que vocês têm aqui um movimento neonazista pequeno. Quando perguntei a respeito, alguém me falou que queriam deportar os judeus, homossexuais e outras pessoas do Nordeste. Me pareceu que não iria sobrar mais ninguém. Eu não estou tão preocupado com as pessoas que colocam um crachá com a sua filiação ao fascismo dos anos 30, ou anunciando isso com uma linguagem política. Estou interessado nas pessoas que repetem os hábitos, os gestos, a solidariedade e as hierarquias como a pureza daquela política, sem dizer que são membros daquele grupo. Mesmo as pessoas que foram oprimidas podem ser vulneráveis a essa sedução. Essa é uma mímese muito perigosa deste poder. Podemos ser vítimas de manhã e, à tarde, podemos ser quem realmente aplica este mesmo terror. Isto tem a ver com o meu argumento em torno da falta ética em torno do nosso anti-racismo. A história do sofrimento não pertence apenas às vítimas e seus dependentes, mas tem um significado maior. Se as pessoas avançam em boa fé, podem ousar lançar mão disso e serão julgadas a partir daí, a partir do que fazem com a sua história.
F - Na palestra e também no novo livro, o senhor disse defender a aceleração da morte da raça. Como essa proposta repercute entre os próprios negros, depois de todo um movimento que tenta a afirmação da raça?
PG - Não me interessa tanto a morte da raça quanto a morte do racismo. Isso é o mais importante. Eu acho que podemos trabalhar melhor contra o racismo quando nós não antagonizamos a diferença racial. Existe um argumento histórico também. Depois da revolução da biotecnologia, e o surgimento do que na palestra eu chamei de biocolonialismo, temos um patrimônio em nossas assinaturas do nosso DNA. Não acho que a definição de raça do Século XVIII vai sobreviver a este encontro. Não implica que a ciência vai desmontar o racismo para nós, mas nos lembra que o discurso racial muda com o tempo e que, com a biotecnologia e o biocolonialismo, ele está passando por uma grande mudança. É possível que as aspirações eugênicas que acompanharam este movimento nostálgico vão nos dar saudades da época da raça.
F - Ainda é importante fazer a crítica a Gilberto Freyre sobre a miscigenação e responsabilizar ele pela criação do mito da democracia racial no Brasil?
PG - Como forasteiro, eu observo que este mito permite que a burguesia não se sinta nada pressionada sobre o racismo que existe no Brasil. Até que este recurso não exista mais, esta crítica terá que ser feita. Mas é uma crítica que não deve ser descartada inteiramente porque é o nosso alerta de padrões ou modelos de interdependência que ainda são muito importantes. A negrofobia e a negrofilia podem co-existir.
F - É a primeira vez que o senhor vem ao Brasil? Quais as suas impressões sobre Salvador?
PG - Sim, é a primeira vez. Há muito tempo que eu queria vir, mas seria errado vir sem ter um ponto de diálogo. Eu queria ouvir o que as pessoas estão dizendo. As impressões são um pouco misturadas, mas chamou a atenção a ambivalência de um Pelourinho disneyficado. Na palestra, eu quis dizer que o Pelourinho não era um lugar de memória da maneira que eu esperava. É estranho quando você vê o material turístico que nós recebemos aqui, como visitantes privilegiados, e a palavra escravidão nunca ser mencionada. Nós somos informados que a indústria açucareira teve um grande boom no Século XVIII. Me parece que a incapacidade de falar a palavra escravidão não é um bom sintoma.
Pingue-pongue / Paul Gilroy
Leandro Colling
Correio da Bahia, 08/08/2000, caderno Folha da Bahia.
Professor de Sociologia e Estudos Afro-americanos da Yale University (Estados Unidos), Paul Gilroy, 44 anos, esteve em Salvador, no final do mês passado, participando do VII Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic). Além de palestrar, ele também lançou aqui o seu mais novo livro Against race (416 páginas, U$29,95). Gilroy ficou conhecido internacionalmente com o livro The black atlantic (280 páginas, U$14,95). Ambos foram editados pela Harvard University Press e podem ser adquiridos pelo site www.hup.harvard.edu.
Nesta entrevista, traduzida pela professora Liv Sovik, ele retoma algumas das suas preocupações como a presença do fascismo na sociedade contemporânea, a redução dos negros a meros símbolos, a validade da crítica ao pensamento de Gilberto Freyre.
Folha - Gostaria de começar repetindo uma pergunta que a professora Luiza Bairros, ligada ao movimento negro da Bahia, fez após a sua palestra no Congresso da Abralic. O senhor sugeriu uma mudança de ênfase no conceito de diáspora, não apenas relacionando-o com a idéia de movimentação de pessoas. Qual é a aplicabilidade do conceito para os movimentos negros do Brasil?
Gilroy - O conceito de diáspora tem maior utilidade quando é mais ligado à história da violência e terror. A visão mais escolástica o vê como sinônimo de viagens e produz uma inocência que, para mim, é profundamente preocupante. É muito fácil somatizar o deslocamento se você está numa situação confortável. Na intervenção que ela fez, enfatizou a elasticidade do conceito. Eu acho que a elasticidade é um dos motivos pelos quais vale a pena brigar por esse conceito. O que me interessa é a forma em que resistem as inclinações disciplinares e autoritárias dos que querem construir a nação. Mesmo quando eles têm boas intenções, acabam envolvidos em outras dinâmicas. No momento em que o nacionalismo insurgente se torna um nacionalismo governamental, está aí um umbral que precisamos olhar com cuidado. Porque o nacionalismo, em todas as suas formas, é um conjunto de patologias.
F - Na palestra, o senhor falou que essa mudança de ênfase do conceito de diáspora pode interromper a lógica daquele que tem o poder de determinar a identidade cultural. Como isso pode ocorrer?
PG - Existem diversas camadas nesse processo. A primeira é a circulação das pessoas, em geral relutantemente. É uma viagem forçada e por obrigação. Em segundo lugar, está a circulação de culturas materiais. Os objetos, à medida que circulam, podem transcender o seu estatuto de simples ou meras mercadorias. Em terceiro lugar, temos a circulação de idéias e mentalidades, a sensibilidade com relação ao mundo natural, externo e interno. Todas essas camadas contribuem com esse processo. E, depois, entram os processos tecnológicos, os complexos tecno-culturais promovendo diferentes padrões ou modelos de solidariedade. O meio acadêmico se identifica muito melhor com o movimento de culturas textuais do que com outros complexos tecnológicos e as formas em que a vida das pessoas pode se conectar.
F - Ao falar da terceira camada desse processo, lembro do seu novo livro, Against race, onde o senhor defende que a mídia reduz as pessoas negras a meros símbolos. O senhor poderia desenvolver esta afirmação? Em que segmento da mídia, o senhor vê isso com mais ênfase?
PG - Quando eu escrevi esse livro, estava pensando na revolução fascista política dos anos 30. Eu vejo esse momento como uma inovação primária política. Uma das formas em que isso se registra é na discussão, já antiga, chamada de estetização da polícia. Eu queria desenvolver essa discussão tomando outro rumo. Não como a política é fruto do ser espectador e da diversão em massa, mas rumo à presença dos significantes icônicos. Os símbolos destilados que são parecidos com esses planetas pesados que nós conhecemos, onde a matéria é tão densa que uma colherinha de chá já fura a terra. O surgimento destes significantes icônicos está ligado com a proibição da fala que os regimes autoritários e totalitários exigem.
F - O senhor poderia dar um exemplo?
PG - O símbolo da Nike vira um choque posterior ao da suástica. Esse aspecto de associação se dá através das rotinas da cultura da empresa. Me interessei em saber o que acontece com o corpo do negro nessas circunstâncias. Para tomar um exemplo óbvio, que não é o de Pelé, cito a figura de Michel Jordan. Eu sei que há algumas resistências a essas questões aqui, mas eu sei que ainda estão presentes. Se você compra a roupa com a grife dele, a logomarca é uma imagem dele pulando no ar com uma bola na mão. Isso torna-se um ícone em si mesmo. Eu queria entender como essa mentalidade empresarial tratou desta política identitária. A necessidade de saber e ter certeza de quem se é em circunstâncias que produzem uma ansiedade em torno de quem se é. Isso foi colonizado por interesses empresariais.
F - Então, o negro se transformou apenas num símbolo de vitalidade e isso também tem importância, mas não uma importância substancial?
PG - Na história do pensamento da raça, que divide claramente os atributos do corpo com os atributos da mente, aos negros foram delegados os atributos do corpo há muito tempo. Mas o diferente é que neste momento pós-moderno, a atividade corporal adquiriu um novo prestígio que atravessa culturas. Eu já observei da janela do quarto do hotel (ele estava hospedado na orla da Barra), os cidadãos privilegiados que estão fazendo exercícios na academia ali em frente. Esta é a cena primal do pós-moderno. É diferente, me parece, do praticar capoeira na praia.
F - No seu novo livro, o senhor também fala que o poder de sedução do fascismo não morreu com o fim dos fornos na Alemanha. Onde o senhor identifica o fascismo com mais força?
PG - Quando eu fui ao banheiro na universidade (UFBA), vi uma suástica na parede. Eu sei que vocês têm aqui um movimento neonazista pequeno. Quando perguntei a respeito, alguém me falou que queriam deportar os judeus, homossexuais e outras pessoas do Nordeste. Me pareceu que não iria sobrar mais ninguém. Eu não estou tão preocupado com as pessoas que colocam um crachá com a sua filiação ao fascismo dos anos 30, ou anunciando isso com uma linguagem política. Estou interessado nas pessoas que repetem os hábitos, os gestos, a solidariedade e as hierarquias como a pureza daquela política, sem dizer que são membros daquele grupo. Mesmo as pessoas que foram oprimidas podem ser vulneráveis a essa sedução. Essa é uma mímese muito perigosa deste poder. Podemos ser vítimas de manhã e, à tarde, podemos ser quem realmente aplica este mesmo terror. Isto tem a ver com o meu argumento em torno da falta ética em torno do nosso anti-racismo. A história do sofrimento não pertence apenas às vítimas e seus dependentes, mas tem um significado maior. Se as pessoas avançam em boa fé, podem ousar lançar mão disso e serão julgadas a partir daí, a partir do que fazem com a sua história.
F - Na palestra e também no novo livro, o senhor disse defender a aceleração da morte da raça. Como essa proposta repercute entre os próprios negros, depois de todo um movimento que tenta a afirmação da raça?
PG - Não me interessa tanto a morte da raça quanto a morte do racismo. Isso é o mais importante. Eu acho que podemos trabalhar melhor contra o racismo quando nós não antagonizamos a diferença racial. Existe um argumento histórico também. Depois da revolução da biotecnologia, e o surgimento do que na palestra eu chamei de biocolonialismo, temos um patrimônio em nossas assinaturas do nosso DNA. Não acho que a definição de raça do Século XVIII vai sobreviver a este encontro. Não implica que a ciência vai desmontar o racismo para nós, mas nos lembra que o discurso racial muda com o tempo e que, com a biotecnologia e o biocolonialismo, ele está passando por uma grande mudança. É possível que as aspirações eugênicas que acompanharam este movimento nostálgico vão nos dar saudades da época da raça.
F - Ainda é importante fazer a crítica a Gilberto Freyre sobre a miscigenação e responsabilizar ele pela criação do mito da democracia racial no Brasil?
PG - Como forasteiro, eu observo que este mito permite que a burguesia não se sinta nada pressionada sobre o racismo que existe no Brasil. Até que este recurso não exista mais, esta crítica terá que ser feita. Mas é uma crítica que não deve ser descartada inteiramente porque é o nosso alerta de padrões ou modelos de interdependência que ainda são muito importantes. A negrofobia e a negrofilia podem co-existir.
F - É a primeira vez que o senhor vem ao Brasil? Quais as suas impressões sobre Salvador?
PG - Sim, é a primeira vez. Há muito tempo que eu queria vir, mas seria errado vir sem ter um ponto de diálogo. Eu queria ouvir o que as pessoas estão dizendo. As impressões são um pouco misturadas, mas chamou a atenção a ambivalência de um Pelourinho disneyficado. Na palestra, eu quis dizer que o Pelourinho não era um lugar de memória da maneira que eu esperava. É estranho quando você vê o material turístico que nós recebemos aqui, como visitantes privilegiados, e a palavra escravidão nunca ser mencionada. Nós somos informados que a indústria açucareira teve um grande boom no Século XVIII. Me parece que a incapacidade de falar a palavra escravidão não é um bom sintoma.
terça-feira, 1 de setembro de 2009
Para ajudar a entender Bhabha
Hibridismo e tradução cultural em Bhabha
SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. In: ABDALA JÚNIOR, Benjamin (org). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo & outras misturas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. P. 113-133.
Aline de Caldas[1], Dyala Ribeiro[2] e Gisane Santana[3]
O autor propõe uma leitura do conceito de hibridismo a partir dos textos teóricos do crítico pós-colonial Homi K. Bhabha. Lançando seu olhar de membro da elite local da sociedade indiana - colonizada pelos ingleses -, Bhabha explica o sentimento de superioridade em relação aos colonizados e, de inferioridade em relação aos colonizadores como sendo a experiência da ironia, na qual dois sistemas de valores e verdades se relativizam, se questionam, se sobrepõem, fazendo com que a duplicidade e a ambigüidade sejam fortes características do hibridismo.
Bhabha confrontou tentativas de escritores, tanto coloniais como colonizadores, em descrever o sujeito colonial. Assim, refletiu sobre que aspecto estava em questão: a linguagem utilizada para representar o sujeito ou a própria noção de sujeito (identidade). Partindo do desconstrucionismo, Bhabha “valoriza o hibridismo como elemento constituinte da linguagem, e, portanto da representação” (p. 114), o que implica na impossibilidade de se pensar uma descrição ou discurso autêntico sobre esse sujeito. Assim, qualquer tentativa de representação é híbrida por conter traços dos dois discursos, num de jogo de diferenças, no qual a busca por uma autenticidade é vista como infecunda.
O autor coloca duas metodologias utilizadas pelas literaturas coloniais para analisar a relação entre colonizado e colonizador: a análise de imagens – “vista como reflexo ou expressão de um conteúdo (o referente) previamente conhecido e fixo” (p. 115) – e a análise ideológica, cujo “conceito chave é a clausura ideológica, o processo pelo qual uma dado texto reprime ou desloca uma ‘contradição” ideológica” (p. 116).
Sugerindo uma idéia de literatura enquanto prática ou processo discursivo, Bhabha atenta para o espaço entre o ver e o interpretar, chamando-o terceiro espaço - o interstício entre significante e significado do qual, considerando o contexto sócio-histórico e ideológico do usuário da linguagem (o locus da enunciação), se pode ter visibilidade do hibridismo.
Com base no trabalho de Fanon, Bhabha destaca três pontos relevantes para a construção da identidade em contextos culturais. O primeiro determina que é necessário existir para, ir em direção a e ter uma ‘relação de desejo’ para com uma alteridade, um outro externo. O segundo ponto, chamado cisão, é caracterizado pelo desejo, por parte do colonizado, de alcançar a posição de superioridade do colonizador, sem, contudo, se desligar de sua condição. O terceiro aspecto diz respeito ao processo de identificação, fazendo surgir uma ‘imagem de identidade’, um projeto, a partir do qual o sujeito sofrerá tentativas de transformação. Assim, será imputado a vestir uma máscara, que deixa uma lacuna (espaço intersticial e relacional) entre a imagem e a pele, não permitindo uma ‘imagem autêntica’.
Lynn Mario de Souza explica que, para Bhabha, colonizado e colonizador, fazem uso de uma tática chamada mímica, a partir da qual se constrói uma imagem persuasiva de sujeito, com o objetivo de “apropriar-se e apoderar-se do Outro” (p.121). Dessa forma, a identidade, sob a perspectiva do hibridismo, não é estanque, sempre remete a uma imagem, uma espécie de máscara, um mito fundacional. Sob o ponto de vista psicanalítico, Bhabha trabalha essa questão a partir do conceito de fetiche, uma espécie de fantasia que afirma uma idéia de totalidade (em relação à identidade) e tenta camuflar a percepção da diferença, da ausência, criando o estereótipo no intuito de negar a multiplicidade e assegurar a pureza cultural.
Souza diz que Bhabha defende um novo conceito de cultura, considerado enquanto “verbo” e não mais como “substantivo”, híbrido, dinâmico, transnacional – gerando o trânsito de experiências entre nações - e tradutório – criando novos significados para símbolos culturais. Este conceito está ligado à questão da sobrevivência, quando os deslocamentos põem em choque diferenças culturais. Assim, o hibridismo vem enfatizar que “culturas são construções e as tradições, invenções” (p. 126), e que, quando em contato, criam novas construções desterritorializadas.
Assim, ao se apropriar da linguagem, Bhabha procura enfatizar a construção do significado pela interpretação (ou ressignificação, conseqüente da subjetividade atribuída à existência de espaços intersticiais), negando a falsa idéia de transparência, homogeneidade e considerando a necessidade de historicizar e contextualizar o momento da enunciação.
em http://www.uesc.br/icer/resenhas/hibridismo_e_traducao_em_bhabha.htm
SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. In: ABDALA JÚNIOR, Benjamin (org). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo & outras misturas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. P. 113-133.
Aline de Caldas[1], Dyala Ribeiro[2] e Gisane Santana[3]
O autor propõe uma leitura do conceito de hibridismo a partir dos textos teóricos do crítico pós-colonial Homi K. Bhabha. Lançando seu olhar de membro da elite local da sociedade indiana - colonizada pelos ingleses -, Bhabha explica o sentimento de superioridade em relação aos colonizados e, de inferioridade em relação aos colonizadores como sendo a experiência da ironia, na qual dois sistemas de valores e verdades se relativizam, se questionam, se sobrepõem, fazendo com que a duplicidade e a ambigüidade sejam fortes características do hibridismo.
Bhabha confrontou tentativas de escritores, tanto coloniais como colonizadores, em descrever o sujeito colonial. Assim, refletiu sobre que aspecto estava em questão: a linguagem utilizada para representar o sujeito ou a própria noção de sujeito (identidade). Partindo do desconstrucionismo, Bhabha “valoriza o hibridismo como elemento constituinte da linguagem, e, portanto da representação” (p. 114), o que implica na impossibilidade de se pensar uma descrição ou discurso autêntico sobre esse sujeito. Assim, qualquer tentativa de representação é híbrida por conter traços dos dois discursos, num de jogo de diferenças, no qual a busca por uma autenticidade é vista como infecunda.
O autor coloca duas metodologias utilizadas pelas literaturas coloniais para analisar a relação entre colonizado e colonizador: a análise de imagens – “vista como reflexo ou expressão de um conteúdo (o referente) previamente conhecido e fixo” (p. 115) – e a análise ideológica, cujo “conceito chave é a clausura ideológica, o processo pelo qual uma dado texto reprime ou desloca uma ‘contradição” ideológica” (p. 116).
Sugerindo uma idéia de literatura enquanto prática ou processo discursivo, Bhabha atenta para o espaço entre o ver e o interpretar, chamando-o terceiro espaço - o interstício entre significante e significado do qual, considerando o contexto sócio-histórico e ideológico do usuário da linguagem (o locus da enunciação), se pode ter visibilidade do hibridismo.
Com base no trabalho de Fanon, Bhabha destaca três pontos relevantes para a construção da identidade em contextos culturais. O primeiro determina que é necessário existir para, ir em direção a e ter uma ‘relação de desejo’ para com uma alteridade, um outro externo. O segundo ponto, chamado cisão, é caracterizado pelo desejo, por parte do colonizado, de alcançar a posição de superioridade do colonizador, sem, contudo, se desligar de sua condição. O terceiro aspecto diz respeito ao processo de identificação, fazendo surgir uma ‘imagem de identidade’, um projeto, a partir do qual o sujeito sofrerá tentativas de transformação. Assim, será imputado a vestir uma máscara, que deixa uma lacuna (espaço intersticial e relacional) entre a imagem e a pele, não permitindo uma ‘imagem autêntica’.
Lynn Mario de Souza explica que, para Bhabha, colonizado e colonizador, fazem uso de uma tática chamada mímica, a partir da qual se constrói uma imagem persuasiva de sujeito, com o objetivo de “apropriar-se e apoderar-se do Outro” (p.121). Dessa forma, a identidade, sob a perspectiva do hibridismo, não é estanque, sempre remete a uma imagem, uma espécie de máscara, um mito fundacional. Sob o ponto de vista psicanalítico, Bhabha trabalha essa questão a partir do conceito de fetiche, uma espécie de fantasia que afirma uma idéia de totalidade (em relação à identidade) e tenta camuflar a percepção da diferença, da ausência, criando o estereótipo no intuito de negar a multiplicidade e assegurar a pureza cultural.
Souza diz que Bhabha defende um novo conceito de cultura, considerado enquanto “verbo” e não mais como “substantivo”, híbrido, dinâmico, transnacional – gerando o trânsito de experiências entre nações - e tradutório – criando novos significados para símbolos culturais. Este conceito está ligado à questão da sobrevivência, quando os deslocamentos põem em choque diferenças culturais. Assim, o hibridismo vem enfatizar que “culturas são construções e as tradições, invenções” (p. 126), e que, quando em contato, criam novas construções desterritorializadas.
Assim, ao se apropriar da linguagem, Bhabha procura enfatizar a construção do significado pela interpretação (ou ressignificação, conseqüente da subjetividade atribuída à existência de espaços intersticiais), negando a falsa idéia de transparência, homogeneidade e considerando a necessidade de historicizar e contextualizar o momento da enunciação.
em http://www.uesc.br/icer/resenhas/hibridismo_e_traducao_em_bhabha.htm
Assinar:
Postagens (Atom)